O melancólico masoquismo das narrativas trans*
por Letícia Lanz
Se tem uma coisa que me incomoda muito, tanto na condição de pessoa trans* como na profissão de psicanalista, é ver a quantidade de masoquismo, dramaticidade, morbidez e auto-piedade neurótica embutida em inúmeras narrativas trans* que circulam pela internet. Narrativas que eu convencionei chamar de “coitadismo de mim”.
A intenção parece ser boa, ou seja, angariar a atenção e o carinho do maior número possível de pessoas pelo resgate dos direitos civis que estão sendo amplamente ofuscados, invisibilizados ou simplesmente negados às pessoas transgêneras neste país. Mas é preciso dizer, sim, que a forma adotada – a narrativa mórbida-masoquista – é grotescamente neurótica, baseada numa redução drástica da riquíssima vida transgênera a um balde de muitas merdas: merda familiar, merda escolar, merda profissional, merda de grana, merda existencial… Merda pura.
Mas o que acontece quando um texto desses cai nas mãos de uma pessoa transgênera, começando agora o seu processo de transição, ainda muito insegura de tudo? Será que ela desiste de seguir adiante em função da previsão de tantas infelicidades e desconfortos no seu caminho?
Eu sinceramente não acredito que uma pessoa transgênera desistisse da sua jornada em função desses vaticínios. A liberdade e o direito de ser a pessoa que a gente é fala mais alto do que qualquer limitação ou dificuldade existente no mundo à nossa volta.
Assim, eu não vejo outro motivo nesses lamuriosos textos de padecimentos e dores ilimitadas, senão reforçar a visão de culpa, de menos valia, de 5ª-pessoa-depois-de-ninguém que vigora no meio transgênero.
Submeter-se ao sofrimento e reforça-lo em toda oportunidade possível e imaginável é uma forma hábil de lidar com a culpa, com a vergonha de estar praticando um ato socialmente reprovável. É assim que o inconsciente funciona, para tristeza de todas nós, que nos acreditamos tão conscientes do nosso ativismo trans.
A única forma de lidar produtivamente com o sofrimento é transformá-lo em pauta de reivindicações e lista de providências. Manter o sofrimento eternamente refém de sofridas narrativas de vida é uma forma cruel de reforçar a punição que já nos foi largamente imposta pela sociedade. Ainda que tenha um inegável valor catártico para quem a escreve ou fala sobre ela, narrativas de cunho altamente doído e sofredor não acrescentam nada em termos práticos para os fins da criação de estratégias que conduzam a resultados efetivos.
Vivi muitos conflitos e tensões ao longo da vida em virtude da minha condição transgênera. Tenho irmão que não fala comigo, mãe que faz de conta que eu nem existo, clientes que sumiram do mapa por medo ou “desconforto” de conviverem com uma consultora trans*. Saí de uma condição de fartura para uma falta total e absoluta de grana. Por muito tempo fiquei sem nenhuma fonte de renda, além de uma aposentadoria de um salário mínimo. Com mais de 50 anos nas costas, tive que recomeçar tudo de novo, do zero. Sem falar que estive à beira de perder minha família – mulher, filhos, netos – que são o patrimônio mais precioso que reuní neste mundo. Fiquei pra baixo do fundo do poço: sem grana, sem emprego, sem perspectiva profissional, pessoal, familiar. Minha história não é segredo pra ninguém.
Mas nem por isso eu me deixei levar pelo sofrimento. Odeio sofrimento, odeio sofrer! Odeio dor, odeio papo masoquista do tipo “o mundo está contra mim”, “o mundo quer me destruir” e outras bobagens semelhantes. Eu escolhi assumir a minha condição de pessoa trans*. Ninguém me forçou a isso. Nenhum destino cruel me empurrou para as masmorras do inferno. Repito: eu escolhi dar cada passo que dei em minha vida, plenamente consciente do passo que eu estava dando.
Sabia perfeitamente que, ao me assumir trans*, perderia meus clientes empresariais. Convivi a vida inteira no ambiental empresarial brasileiro e sei como ele é conservador, como tem uma dificuldade crônica de lidar com a diferença, qualquer diferença.
Enfim, eu não dei um pulo no escuro, apenas imaginando o que eu poderia encontrar pela frente: – eu tinha certeza antecipada de tudo que ia passar. Em nenhum momento eu fui tola de pensar que, ao assumir-me trans* eu seria condecorada pelo prefeito da cidade, em sessão solene, pelo meu ato de bravura, com direito a banda de música e fogos de artifício. Muito pelo contrário, sabia dos dias e noites dificílimos que teria pela frente. Dias de sangue e suor e noites de muitas, muitas lágrimas.
Mas em momento nenhum eu permiti que o meu sofrimento se transformasse em bandeira, em motivo de piedade dos outros. Porque, em momento nenhum, o sofrimento que eu senti foi maior do que a imensa sensação de liberdade, de prazer em me conhecer, em me reconhecer, em me legitimar como pessoa nesse mundo.
Nenhum sofrimento, por mais agudo que fosse – e posso assegurar que alguns, de tão dolorosos, deixaram marcas profundas no meu próprio coração – foi maior do que a minha alegria de conseguir, finalmente, ser “eu mesma”, depois de décadas tentando fazer me passar por alguma outra coisa… E falo isso sem romantismo nenhum, porque as marcas foram profundas mesmo, no meu coração: uma arritmia crônica e alguns “stents”.
Em síntese: jamais permiti que as dificuldades de ser uma pessoa diferente, num mundo tão monotonamente igual, se transformassem em fonte de amargura e morbidez. Como reafirmo a todo momento em que me vejo no espelho, tudo valeu a pena. Não troco a minha liberdade e o tamanho do meu ser atual por nenhuma conta bancária, por nenhum sucesso profissional, por nenhum reconhecimento público, enfim, por nada deste mundo ou de qualquer outro.
Por isso, recuso terminantemente o “coitadismo de mim” que tem caracterizado a maioria das narrativas trans* que ouço e leio por aí. Eu digo a maioria porque, felizmente, há muitas, belas e magnifícas exceções. Para nosso orgulho, há pessoas transgêneras que teriam tudo pra chorar noite e dia, em razão de todas as provações e humilhações que já passaram neste mundo e que, no entanto, estão aí, distribuindo sorrisos de simpatia e apostando na vida como grandes vitoriosas que são.
Pessoas que se recusam posar de vítimas, mesmo tendo passado poucas e boas (ou seja, muitas e ruins…) nas mãos dessa sociedade. Pessoas que não se entregam a uma autopiedade neurótica, resultante de um masoquismo crônico em que o sofrimento, em todas as suas formas mais cruéis e virulentas, vem adiante da conquista da própria individualidade, no ato de se assumir como pessoa trans*.
Eu sou uma pessoa trans* e não abro mão disso, já disse, por nada deste mundo. Tenho um orgulho pra lá de grande em ser e não tenho a menor inveja de quem não é. Sou uma pessoa incrível, uma profissional dificílima de se encontrar. De modo que, se algum dia, resolverem lançar mão da competência, em vez dos apadrinhamentos e conchavos políticos, talvez até se lembrem de mim. Se se lembrarem, ficarei imensamente feliz por conquistar novas oportunidades de trabalho. Se não se lembrarem, fiquei igualmente feliz por não ter que lidar com gente que tem dificuldade de lidar comigo.
E quanto às desesperadas narrativas masoquistas, infelizmente tão comuns no mundo trans, recomendo que as pessoas tentem pensar e sentir efetivamente o que estão dizendo. E, se chegarem à conclusão de que, ser trans, é efetivamente esse tenebroso “mar de lágrimas”, talvez seja mais recomendável tentarem ser pessoas cisgêneras. Comuns, normais e totalmente livres de sofrimento… afff!
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